A LIBERDADE... O CONHECIMENTO... A ARTE... "A terapia é o entretenimento dos ricos, e a televisão o analista despreparado dos pobres". (André Dahmer) - (6ª versão sobre o misterioso médico austríaco).
(2) – Wilhelm Reich. 5ª Versão – Por Bernd A. Laska. (Freud contra) Reich – Essência e Conseqüência. Original: Wilhelm Reich – Essenz und Konsequenz. Tradução: Josef Keller – 04 de agosto de 2003. Súmula biográfica. Wilhelm Reich nasceu em 1897 na Áustria e faleceu em 1957 nos Estados Unidos. Era natural da Bucovina, naquela época a província mais oriental do império austro-húngaro, geograficamente mais afastada do Viena que Kiev, a capital da Ucrânia. O pai de Reich era dono de uma rentável propriedade agrícola. A família abandonara a tradição judaica de seus antepassados e tinha assimilado a cultura alemã, sem se ligar, no entanto, a nenhuma igreja cristã. Inicialmente, Wilhelm tinha aulas com professores particulares, mais tarde passou a freqüentar a escola secundária da capital da província, Czernowitz. Pelas informações que temos, vivia uma infância normal, até que, aos 12 anos de idade, sobreveio um grande trauma psíquico. A mãe de Wilhelm tivera um caso com seu preceptor; por engano ou por razões inconscientes, Wilhelm, que sabia desse segredo, acabou revelando-o ao pai. O casamento não resistiu à crise provocada pela inconfidência: a mãe de Wilhelm se suicidou. Poucos anos mais tarde faleceu também o pai de Reich. Como não conseguisse superar a tragédia familiar, contraiu, supostamente de propósito, uma doença que o levou rapidamente à morte. A essa altura, Wilhelm estava com 17 anos. Além de freqüentar a escola, viu-se na contingência de ter que administrar a propriedade. Mas por pouco tempo, porque em breve começou a guerra que haveria de transformar-se rapidamente em guerra mundial. A propriedade de Reich ficava numa região que, logo no início da guerra, foi ocupada por tropas inimigas. O próprio Reich conseguiu fugir e serviu durante três anos e meio como soldado no exército austro-húngaro. Terminada a guerra, a propriedade de Reich já não ficava em território austríaco e foi desapropriada. Depois de dar baixa do exército, Reich, que ficara totalmente sem recursos, mudou-se para Viena onde começou a estudar medicina. Em parte devido à tragédia familiar, Reich demonstrou um forte interesse pela investigação científica da sexualidade. Como a universidade daquela época pouco tinha a ensinar sobre essa matéria, Reich procurou Sigmund Freud que, havia duas décadas, estava desenvolvendo uma teoria que colocava a sexualidade no centro das atenções, a assim chamada psicanálise. Ainda estudante de medicina, Reich se filiou em 1920 à União Psicanalítica, na qual, durante mais de uma década, se destacou como o mais ativo e criativo dos analistas mais jovens. Muitos viam em Reich, com seus 30 anos de idade, o "príncipe herdeiro" de Freud que já chegara aos 70 anos. Mas as aparências da ascensão brilhante do psicanalista Reich enganavam. Paralelamente à carreira meteórica desenvolveu-se às escondidas e de modo quase imperceptível um movimento em sentido contrário que, finalmente, levaria ao banimento do psicanalista. Esse processo, obviamente muito sutil, aqui só pode ser mostrado de modo genérico. Quando Reich aderiu à psicanálise, Freud acabara de reconsiderar a sua teoria inicial das pulsões introduzindo a assim chamada pulsão de morte ("Jenseits des Lustprinzips", 1920). Antes concebidas como fisiológico-psíquicas, passou a chamar as pulsões de "entes míticos": eros e tânatos. Para muitos discípulos, não tanto para o próprio Freud, tratava-se de uma carta de alforria que deixava curso livre à própria fantasia na interpretação das manifestações dos pacientes. Para Reich, a psicanálise começou a transformar-se de disciplina clínica em hermenêutica. Essa tendência mostrou também que se procurava evitar um posicionamento claro na questão fundamental do que vem a ser, em última análise, a terapia psicanalítica, ou seja, quais os critérios que poderiam definir a saúde psíquica. Partindo das teorias iniciais de Freud, Reich defendeu desde o princípio uma psicanálise médica, baseada em correlações psicossomáticas; a questão do critério da saúde não deveria ser desprezada em favor de uma arbitrariedade terapêutica. Durante alguns anos, Reich pensava estar atuando perfeitamente segundo as intenções de Freud elaborando, por exemplo, um critério para o restabelecimento, ou seja, para a saúde: a "potência orgástica". Mas Freud reagiu de forma estranhamente reservada à proposta de Reich. Em particular, magoou Reich com uma observação curta e irônica; publicamente manteve-se em silêncio. Uma carta a uma terceira pessoa revela um crasso equívoco intencional, novamente revestido de ironia: Reich estaria "venerando" no orgasmo o "antídoto de toda neurose". (1) Enquanto Reich pretende colocar em discussão um critério – útil ou não, é outra questão –, Freud o rejeita como panacéia e charlatanismo, recusando qualquer discussão. Percebe-se que Freud estava muito alarmado com o trabalho de Reich, parece que estava temendo as conseqüências de sua própria teoria, porque do critério de saúde falta apenas um passo para exigir a profilaxia numa dimensão social da psicanálise. Freud ficou em silêncio também a respeito das inovações técnico-terapêuticas cujo desenvolvimento se devia sobretudo à insistência no critério da potência orgástica: a análise de resistência e a análise de caráter. Freud que, no início, sentira grande apreço por seu discípulo engajado e promissor, passou a assumir, em meados da década de 20, uma atitude ambivalente mostrando-se mais e mais apreensivo. Finalmente, depois da leitura do manuscrito de Reich, "O caráter masoquista. Uma refutação econômico-sexual da teoria da pulsão de morte", (2) Freud, segundo uma anotação feita em seu diário exatamente em 1/1/1932, chegou à conclusão irrevogável de que Reich devia ser desligado da psicanálise. Por que? Freud não indicou o motivo. Certamente, muita coisa estaria em jogo para Freud, para que ele, um homem íntegro que se via a si mesmo como um cientista e iluminista, recorresse a um procedimento que lhe era totalmente avesso. Apesar de referir-se, numa carta, a "razões científicas" para o desligamento de Reich, fez de tudo para evitar uma discussão pública dessas razões, tramando um verdadeiro processo secreto de heresia para afastar Reich da psicanálise. No congresso dos psicanalistas realizado em agosto de 1934 em Lucerna, Reich foi transformado, da noite para o dia, em persona non grata da qual não se falava mais, à maneira do que aconteceu a Trotzki na União Soviética de Stalin, só que sem o uso de qualquer sistema de terror, como deve ser sublinhado. Freud e seus auxiliares entre os principais representantes da DPG (Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft) e da IPV (Internationale Psychoanalytische Vereinigung) deviam estar muito seguros do procedimento escolhido, aliás único na história da psicanálise. Certamente estavam seguros de que ninguém perguntaria seriamente pelas razões plausíveis que tornavam de repente insustentável a filiação de uma das figuras mais destacadas do movimento, a ponto de excomungá-lo de forma tão vergonhosa. Tinham prometido a Reich que os motivos de seu desligamento seriam publicados posteriormente, mas de fato nunca se pensou nem sequer na possibilidade de cumprir essa promessa, pelo contrário, os órgãos competentes da organização psicanalítica deixaram de informar até mesmo sobre a exclusão de Reich. E nenhum psicanalista pediu satisfações. O relato sobre a exclusão, (3) publicado por Reich em 1935 em sua própria revista, foi simplesmente ignorado. Durante décadas, a historiografia da psicanálise deixou de tomar conhecimento dele. Talvez os analistas menos bem informados tenham conjeturado, na época, que o motivo para a exclusão de Reich devesse ser procurado em seu engajamento político. Mas, a simpatia de Reich pelo marxismo e sua filiação ao partido comunista alemão poderiam ser considerados apenas como pretexto para o seu banimento. Outra hipótese segundo a qual Freud e a sua IPV teriam sacrificado Reich para ganhar as graças dos novos donos da Alemanha nazista parece pouco convincente, porque o engajamento de Reich em organizações comunistas, que começara em 1927 em Viena e que nunca fora criticado por Freud, tinha terminado em 1933, um ano antes, portanto, pela expulsão de Reich do partido comunista. De fato, até aquele momento, os órgãos do Estado nazista pouca atenção tinham dado às atividades de Reich; se a intenção de Freud fosse mesmo assim o apaziguamento deles, a exclusão não teria se revestido de um caráter tão conspirativo e silencioso. O verdadeiro motivo de Freud para promover o banimento de Reich residia sobretudo no antagonismo que, para Freud, se revelava nitidamente nas posições antropológica e filosófico-cultural de ambos. Essas duas posições antipódicas continuam despertando grande interesse até hoje, justamente porque, desde o início até o tempo atual, existem grandes resistências até mesmo em nomeá-los. Voltarei a elas posteriormente, se bem que apenas em poucas palavras. A posição de Reich era inaceitável tanto para os freudianos quanto para os marxistas, conforme demonstram as reações de rejeição da parte do KPD (Kommunistische Partei Deutschlands) e da IPV. Assim, também psicanalistas marxistas, como Bernfeld, Fromm ou Fenichel, e marxistas interessados na psicanálise, como Trotzki no exílio, ou os "teóricos críticos", como Adorno, Horkheimer e Marcuse, não simpatizavam com as idéias de Reich. Todos eles trataram Reich como uma persona non grata ignorando simplesmente as suas colocações teóricas. Depois da expulsão das organizações, sobre cuja orientação teórica e ideológica pensara poder exercer alguma influência, Reich pretendia fundamentar melhor a posição rejeitada de modo tão inusitado consolidando a sua autonomia. Lutando com as dificuldades do exílio, a partir de 1934 na Noruega e a partir de 1939 nos EUA, tentou reforçar as suas descobertas psicológicas e sociológicas por meio de investigações próprias nas áreas de fisiologia, de biologia e, mais tarde, também de física. Por um lado passou a considerar em seu método terapêutico as funções involuntárias e vegetativas do organismo transformando a sua "análise do caráter", que tinha a sua origem na psicanálise, em "vegetoterapia"; (4) por outro lado aprofundou-se, por meio de pesquisas experimentais próprios, nas áreas elementares da biologia e da física. Finalmente chegou à conclusão de que havia dado início a uma nova época científica com a descoberta da energia cósmica "primordial", chamada por ele de "orgônio". Aqui não trataremos da evolução do pensamento de Reich, nem do caminho que o levou à "orgonomia". É verdade que Reich insistia na coerência de sua trajetória, no "fio vermelho" que perpassaria toda a sua obra desde 1920. Mas, esta coerência interna não é tão óbvia como ele afirma, a não ser que a vejamos, como alguns de seus adversários, na constatação de que a loucura de Reich não se manifestou apenas no "descobrimento do orgônio" e, sim, desde o princípio. (5) Ao tentar descobrir a coerência interna da trajetória de Reich, os diversos reichianos se viram muitas vezes confrontados com esse problema. Quando a admitiam faziam-no apenas de maneira formal e sem convicção, dependendo do enfoque que podia privilegiar o antifascista dos primeiros tempos, freudo-marxista e político-sexual, ou o terapeuta orgonômico e apolítico da fase final. Eu acho que o "fio vermelho" de Reich existe realmente, mas é ainda hoje um fio de meada bem mais oculto do que o próprio Reich supunha. A obra completa de Reich se parece com um palimpsesto em que o texto original continua em grande parte oculto debaixo das camadas psicanalítica, marxista, orgonômica e outras. Os efeitos provocados por Reich. Durante as diversas fases de seu desenvolvimento, Reich sempre atraiu pessoas que se entusiasmaram pelas suas idéias. Os primeiros seguidores apareceram logo depois de sua filiação à União Psicanalítica de Viena. Geralmente eram jovens analistas de sua própria geração que trilhavam novos caminhos sob a orientação dele no chamado Seminário Técnico, uma instituição nova cuja criação ele próprio tinha sugerido. Admirando a capacidade de Reich de trabalhar com sistema para alcançar os objetivos propostos, deixaram-se empolgar por sua vitalidade esfuziante, conforme o testemunho de muitos deles. Quando Reich, em 1927, começou a envolver-se também no movimento operário marxista, ganhou mais discípulos para o projeto de fundir as teorias dos últimos grandes iluministas, Freud e Marx. Apesar do grande número de adeptos e simpatizantes entre os psicanalistas mais jovens, poucos ficaram a seu lado quando, em 1934, chegou o momento da decisão, quando Freud os colocou, implicitamente, diante da alternativa: "ou eu ou ele". Reich deixou a Alemanha pouco depois da posse de Hitler. Depois de uma breve estada na Dinamarca foi para a Noruega onde viveu durante cerca de cinco anos. Em Oslo conseguiu, novamente, reunir logo um grupo ativo e editar até um periódico prestigioso, a "Zeitschrift für Politische Psychologie und Sexualökonomie" (1934-1938) ("Revista de Psicologia Política e Economia Sexual"). Mas quando Reich, em 1939, emigrou para os EUA, também esse grupo de discípulos, que ainda tinha cunho marxista, acabou se dispersando. Os abalos políticos da época provocaram uma reorientação considerável em seus membros e até no próprio Reich, tanto que submeteu a versão americana de seu livro "Psicologia de massa do fascismo" a uma revisão profunda. Nos EUA, Reich se apresentou desde o início como um cientista sem vínculos políticos, como "discoverer of the orgone energy". E novamente conseguiu em pouco tempo reunir em torno de si um grupo de colaboradores qualificados, geralmente médicos e psiquiatras. De novo teve a oportunidade de publicar a sua própria revista e uma série de livros. Essa última escola formada diretamente por Reich se desfez em 1957 quando ele foi detido, formalmente por "contempt of court", na verdade pela causa que defendia; acabou falecendo na prisão. Em vida, Reich era discutido sobretudo em pequenos círculos especiais ou em subculturas. Sua fama só aumentou realmente depois de sua morte, e nem sempre por razões muito honoráveis. O redescobrimento de Reich na maior parte dos países ocidentais se deu em três frases superpostas que correspondiam mais ou menos às fases do desenvolvimento de Reich: 1) Em meados dos anos 60, uma parte da "Nova Esquerda" redescobriu o Reich dos anos 1927-33. 2) Em meados dos anos 70, alguns grupos ligados aos modismos psicológicos da época redescobrem o Reich dos anos de 1934 até a década de 1940. 3) Em meados dos anos 80, uma parte dos círculos esotéricos se volta ao Reich de 1940 em diante. Quanto a 1: A primeira fase teve início com a descoberta de Reich pelo movimento estudantil dos anos 60 nos EUA e na Europa, especialmente na Alemanha ocidental. Rapidamente Reich ganhou popularidade considerável, se bem que ambígua. Havia muito entusiasmo pelo crítico freudo-marxista do fascismo, pelo autor de "Psicologia de massa e fascismo", mas tudo o que Reich publicara depois de 1933 foi simplesmente rejeitado, sem ao menos ter sido analisado. Paralelamente registrou-se um movimento que, tendo descoberto em Reich o reformador sexual, passou a venerá-lo como o profeta de uma "revolução sexual", entendida geralmente nos moldes de um hedonismo vulgar. A Nova Esquerda de "68" redescobriu Reich mais por acaso, tanto assim que os livros dele deixaram poucas marcas em seu discurso, apesar das grandes tiragens. Essa Nova Esquerda, na medida em que se inspirava na psicanálise, era mais freudiana do que reichiana. Seus mestres foram, ao lado de Freud que era recebido com certas restrições políticas, Adorno, Horkheimer, Marcuse, e até Mitscherlich. Estes mantinham um silêncio significativo a respeito de Reich, como aliás já acontecera nos anos 30. Seus jovens adeptos souberam interpretar esse silêncio no sentido exato: teoricamente, Reich não pode ser levado a sério, nem o primeiro e menos ainda o último Reich. Até era objeto de zombarias, como a brincadeira de chamá-lo ocasionalmente de "São Wilhelm", de "o verdadeiro socialista" e, naturalmente, de "pequeno-burguês". O banimento de Reich, que tinha sido aceito com surpreendente docilidade já nos anos 30, encontrou continuidade nos jovens freudo-marxistas porque consideravam o Reich pós-1934 um louco (o que parecia justificar também a sua expulsão do movimento psicanalista). Quanto a 2: A grande popularidade de Reich promovida meio por engano pela Nova Esquerda despertou os herdeiros do Reich tardio que estavam como que paralisados depois da morte dele em 1957. Alguns discípulos americanos de Reich se reuniram em torno do "Journal of Orgonomy", criado em 1967. Os legatários dos direitos autorais de Reich lançaram novas edições de seus livros e os fizeram traduzir em outras línguas, sempre nas versões que tinham sido profundamente revistas por Reich e que, por isso mesmo, divergiam em partes substanciais das edições originais em alemão. Em alguns países, o número de exemplares vendidos chegou a surpreender. Foram publicadas biografias e bastante literatura secundária. A imagem de Reich se tornou mais variegada, mas também mais contraditória e, certamente, não ficou mais clara. Depois de uma breve floração, a Nova Esquerda foi carcomida por uma ruína progressiva, não só no terreno político, mas sobretudo no teórico. Da massa falida, alguns se transferiram para o movimento terapêutico que estava então em franca ascensão. Lá se lembraram de Reich, sem aspirações teóricas, mas também sem maiores escrúpulos. Pragmaticamente apropriaram-se de algumas técnicas terapêuticas eficientes encontradas na obra dele e as comercializaram juntamente com muitas outras. Depois que alguns fundadores de bem-sucedidas escolas terapêuticas, como por exemplo Alexander Lowen ("Bioenergética") e Fritz Perls ("Gestalt"), fizeram referência à sua origem parcialmente reichiana, Reich começou a ter a fama duvidosa de ser o "pai da psicoterapia corporal". O nome de Reich não pára de aparecer numa avalanche imensa de publicações especializadas, em geral em contextos nada específicos. Mas existem também terapeutas ou escolas terapêuticas que se reportam expressamente a Reich, adotando adjetivos como "orgonômicas" ou, de forma menos ortodoxa, "neo-reichianas". Existem também descendências que remontam a origens reichianas, como por exemplo a que passa de Reich ao discípulo norueguês Ola Raknes e ao discípulo italiano deste último, Federico Navarro, que por sua vez tem discípulos no Brasil. Por outro lado existe o "College of Orgonomy" estadunidense, fundado nos anos 60 por alguns discípulos diretos de Reich, que se entende até hoje como a única instituição legitimamente reichiana. Segundo as informações que tenho, há pouca cooperação construtiva entre as diversas escolas terapêuticas que se reportam, umas mais outras menos, a Reich. O próprio Reich encarou as atividades de alguns de seus discípulos diretos com bastante ceticismo. Não poucos entre eles, achava Reich, só adotavam as suas técnicas eficazes para fazer sucesso como "médico de moda que fatura com a miséria humana". Nesse pronunciamento do Reich da última fase transparece um pouco aquele "fio vermelho" de que falamos antes e que perpassa a obra de sua vida: a terapia individual é praticamente inútil quando não leva a um objetivo claro, de modo que contribua para o aumento do conhecimento que é necessário para fazer propostas realísticas acerca de medidas preventivas para combater a miséria psíquica das massas. Quanto a 3: Com algum atraso, representantes de um outro movimento difuso que estava em moda se apoderaram de algumas idéias de Reich misturando-as com outras; são os chamados "esotéricos" das mais diversas proveniências: PSI-pesquisadores, tantristas, satanistas, radioestesistas, parafísicos, parapsicólogos, ufologistas, psicotrônicos, energéticos e tutti quanti. Parece que a "orgonomia" de Reich e, de modo especial, os escritos de seus últimos anos exercem uma forte atração sobre todo tipo de irracionalistas e obscurantistas. Os círculos em que Reich aparece mais ou menos como um esotérico se sobrepõem a outros em que florescem técnicas terapêuticas denominadas reichianas ou neo-reichianas. Não vale a pena entrar em detalhes. Quem quiser informar-se sobre tudo o que existe nessa área tem à sua disposição hoje em dia as pesquisas pela Internet. A popularidade póstuma de Reich, que já dura uns quarenta anos, fez com que a literatura especializada, sobretudo no campo da psicologia, lhe desse mais atenção. Havia uma série de compêndios e monografias históricas que analisavam a contribuição de Reich para a psicanálise. Mas, mesmo quando essas análises se mostravam objetivas e corretas, estavam sempre limitadas aos méritos de Reich dentro do contexto da psicanálise freudiana, ou seja, aos assim chamados fatos. Dificilmente se dava a devida importância à sua exclusão da psicanálise e à proscrição que sofreu durante décadas. Só no início dos anos 80 quando entre os psicanalistas alemães começou, aliás com bastante atraso, uma espécie de "revisão do passado", surgiram, mais ou menos por acaso, certos materiais de arquivo que abriam uma nova perspectiva sobre a expulsão de Reich. Tudo indicava que o banimento de Reich não poderia ter acontecido contra a vontade ou sem o consentimento tácito de Freud. Mas agora muitos se mostravam surpresos com a evidência de que no fundo o próprio Freud tinha sido o motor de toda a ação. Continuaram, porém, no escuro os motivos que teriam levado Freud a essa ação totalmente incompatível com o seu etos de iluminista e cientista. Num dos estudos mais competentes sobre o "caso Reich" encontra-se a afirmação de que a exclusão de Reich teria servido, naquele momento, como um "sinal de subserviência frente aos nazistas e seu poder". Não que os desentendimentos "clínico-teóricos" e "ideológicos" anteriores entre Freud e Reich não sejam mencionados, mas acabam sendo descartados em favor da tal "motivação primariamente política" de Freud. Esses desentendimentos, que existiam subliminarmente mais ou menos desde 1925 e que levaram comprovadamente à decisão tomada por Freud em 1/1/1932, precisam ser pesquisados mais a fundo. A questão da natureza desses desentendimentos "ideológicos", chamados por Freud de "científicos", a questão de sua irreconciliabilidade, do tabu que impedia a sua discussão e que parece ter obrigado Freud a tomar a decisão que tomou, receberam tratamento meramente superficial, assim como a pergunta pelos motivos que levaram ao consentimento tácito de quase todos os analistas. O tabu de então parece atuante até hoje, uma vez que o caso Reich, em sua substância "ideológica", continua sem explicação plausível até os nossos dias. Não se trata apenas da reabilitação de um homem que foi injustiçado como milhares de outros, está em jogo também a pesquisa da história das idéias, uma pesquisa que poderia ter alguma importância para nós hoje. Leo Raditsa, um ex-reichiano, deve ter intuído de alguma maneira a importância epocal desses desentendimentos para a história das idéias quando caracterizou Reich da seguinte maneira: "He was a splendid child of Europe’s love of rationality, perhaps her last." (7) Reich como "iluminista do futuro." Acabo de citar que "Reich foi um grande filho do amor da Europa pela racionalidade, talvez seu último". Seu autor, Leo Raditsa, não deu maiores justificativas para o seu juízo. Aparece de repente no meio do texto, errático como uma inspiração, como a emanação espontânea da quintessência de um confronto de décadas com Reich. Quase todos devem considerar extremamente exagerado esse juízo, como um disparate, o cúmulo do absurdo. Por que justamente Reich, que de profeta sexual e comunista passou a ser visto como naturalista esotérico e caçador de OVNIs, deveria ter uma relação especial com a razão? Até se admite que, algumas vezes, tenha revelado uma boa intuição, graças à qual chegou a desenvolver algumas técnicas proveitosas. Talvez até o reconheçam por seu engajamento em prol de reformas sexuais e contra o fascismo. Mas isso não significa que vejam em Reich, como sugere Raditsa, o último iluminista da Europa. Até o momento, ninguém parece disposto a autenticar essa posição singular de Reich na história das idéias do século XX. No entanto, a mim me parece um desafio atraente e promissor. Claro que não se trata de uma tarefa que se resolve em dez minutos. Em primeiro lugar seria necessário refletir sobre o destino da iluminismo no século XX. Freud e a maior parte de seus discípulos, especialmente Reich, se consideravam definitivamente como iluministas, assim como também os marxistas das mais diversas tendências; depois devem ser citados aqueles que, à maneira de Adorno, Horkheimer etc., deram continuidade aos esforços de Marx, Freud e de outros iluministas, além de uma gama ampla de filósofos, entre os quais os membros do Círculo de Viena. Esse conceito tipicamente europeu-continental, que vê no esclarecimento iluminista uma tarefa do presente e do futuro, desapareceu de maneira difusa e estranhamente imperceptível no decorrer do segundo terço do século XX. Furtivamente, a cultura ocidental entrou num estágio em que ninguém mais sabe dizer em que poderia consistir hoje aquele iluminismo que a maioria dos pensadores da época antes da guerra considerava como missão sua. De repente, o iluminismo passou a ser visto como uma época longínqua. Com a implementação militar e política do regime da democracia parlamentar em toda a Europa pensava-se ter chegado "at the end of history", para usar a expressão de Fukuyama. Só aqueles que não querem se satisfazer com essa ideologia terão alguma motivação para analisar o destino do pensamento iluminista. E como Freud se destaca como o iluminista mais influente do século XX, recomenda-se também um exame mais minucioso do destino da psicanálise. Resumindo: Conforme está sugerindo o enfoque de minha exposição, considero o conflito "Freud contra Reich" o acontecimento-chave cuja análise exata deverá fornecer 1) a explicação definitiva para o desaparecimento puro e simples do grande projeto europeu de iluminismo, e 2) os dados que talvez esclareçam se, e em que sentido, Reich pode ser chamado de "iluminista do futuro". Com a necessária brevidade gostaria de terminar com a tentativa de definir em traços rápidos o antagonismo entre Freud e Reich. Ambos se mostraram pessimistas em relação à terapia; quando Freud declara que o êxito das curas realizadas pela psicanálise não pode competir com o de Lourdes, recomendando, por isso mesmo, a análise não como terapia e, sim, por causa de seu conteúdo de verdade, há de encontrar em Reich certamente o apoio mais sincero. As opiniões de ambos se opõem, no entanto, na questão da conseqüência "normativa" do conteúdo da verdade. A fórmula criada por Freud diz: "Onde havia o id deverá surgir o ego." Reich, por sua vez, afirma: "Onde havia o super-ego deverá surgir o ego", usando naturalmente a linguagem da análise desenvolvida por ele. [conf. »A negação do super-ego irracional em Wilhelm Reich« »Die Negation des irrationalen Über-Ichs bei Wilhelm Reich«] Mostramos sumariamente que Wilhelm Reich foi o antípoda iluminista radical do iluminista predominante do século XX, Sigmund Freud, pelo qual acabou sendo "reprimido". Em fases anteriores do iluminismo podem ser constatados dois processos análogos. Pelos mesmos motivos e com métodos muito parecidos foram desqualificados na história das idéias, no século XVIII, La Mettrie (por Voltaire, Diderot & Cia.) e, no século XIX, Stirner (por Marx, Nietzsche & Cia.). Por isso tentamos aproveitar no "Projeto LSR" (8) o efeito sinergético das coincidências de conteúdo e dos paralelismos da história da repercussão dos três "casos" (La Mettrie, Stirner, Reich), para desvendar a idéia central que lhes é comum e, quiçá, reanimar dessa maneira a ação iluminista paralisada há décadas. conf. Max Stirner, um dissidente que resiste ao tempo - um resumo. Como Marx e Nietzsche recalcaram seu colega Max Stirner e por que ele sobreviveu intelectualmente a isso. [conf. »A negação do super-ego irracional em Max Stirner« »Die Negation des irrationalen Über-Ichs bei Max Stirner«] [conf. »A negação do super-ego irracional em La Mettrie« »Die Negation des irrationalen Über-Ichs bei La Mettrie«] ________________________________________ Notes: (1) Sigmund Freud / Lou Andréas-Salomé - Briefwechsel. Frankfurt/M 1966, S. 191 (2) Wilhelm Reich: Der masochistische Charakter. In: Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, XVIII (1932), S. 303-351; enth. in Wilhelm Reich: Charakteranalyse, 1933, 1949ff, Teil II, Kap. V (3) anonym [Wilhelm Reich]: Der Ausschluss Wilhelm Reichs aus der Internationalen Psychoanalytischen Vereinigung. In: Zeitschrift für Politische Psychologie und Sexualökonomie - Organ der Sexpol - Band 2, Heft 1 (5) (1935), S. 54-61 (4) Wilhelm Reich: Psychischer Kontakt und vegetative Strömung. København: Sexpol-Verlag 1935; enth. in Wilhelm Reich: Charakteranalyse, 1949ff, Teil III, Kap. I (5) Béla Grunberger / Janine Chasseguet-Smirgel: Freud ou Reich? Psychanalyse et Illusion, Paris: ClaudeTchou 1976; (6) Karl Fallend / Bernd Nitzschke: Der "Fall" Wilhelm Reich. Frankfurt/M: Suhrkamp 1997 (7) Leo Raditsa: Some Sense About Wilhelm Reich. New York: Philosophical Library 1978, p. 46 (8) Bernd A. Laska: LSR-Projekt. Siehe im Internet: http://www.lsr-projekt.de ________________________________________ Bibliografia (select): De Wilhelm Reich: Die Funktion des Orgasmus. Zur Psychopathologie und zur Soziologie des Geschlechtslebens. Wien...: Internationaler Psychoanalytischer Verlag 1927 port.: Psicopatologia e sociologia da vida sexual. Trad.: M. S. P. São Paulo: Global s.d. Der Einbruch der Sexualmoral. Zur Geschichte der sexuellen Ökonomie. Berlin: Verlag für Sexualpolitik 1932; 2., ergänzte Aufl. Kopenhagen: Verlag für Sexualpolitik1935; 3., revidierte Aufl. u.d.T. "Der Einbruch der sexuellen Zwangsmoral". Köln: Kiepenheuer & Witsch 1972. port.: A Irrupção da Moral Sexual Repressiva. Trad.: .... São Paulo: Martins Fontes 19.... Charakteranalyse. Technik und Grundlagen für Studierende und praktizierende Analytiker. København: Im Selbstverlage des Verfassers 1933 (stark erweiterte Fassung 1949 in englischer und 1970 in deutscher Edition) port.: Análise do caráter. Trad. de M. Lizette Branco. São Paulo: Martins Fontes 1989 Die Massenpsychologie des Faschismus. Zur Sexualökonomie der politischen Reaktion und zur proletarischen Sexualpolitik. København / Praha / Zürich: Verlag für Sexualpolitik 1933 (stark revidierte und erweiterte Fassung 1946 in englischer und 1971 in deutscher Edition) port.: Psicologia de massas do fascismo. Trad.: Maria da Graça M. Macedo. São Paulo: Martins Fontes 2001 Die Sexualität im Kulturkampf. Zur sozialistischen Umstrukturierung des Menschen. København: Sexpol-Verlag 1936. (Neuauflage u.d.T. "Die Sexuelle Revolution". Zur charakterlichen Selbststeuerung des Menschen, Frankfurt/M: Europäische Verlagsanstalt 1966) port.: A revolução sexual. Trad.: Ary Blaustein. Rio de Janeiro: Guanabara 1988 Die Funktion des Orgasmus. Sexualökonomische Grundprobleme der biologischen Energie ["Die Entdeckung des Orgons", Band 1]. (Erschien zuerst in englischer Übersetzung von Theodore P. Wolfe: The Function of the Orgasm.... New York: Orgone Institute Press 1942). Köln: Kiepenheuer & Witsch 1969 !!! Gänzlich anderer Text als der des Buchs gleichen Titels von 1927 !!! Der Krebs ["Die Entdeckung des Orgons", Band 2]. (Erschien zuerst in englischer Übersetzung von Theodore P. Wolfe: The Cancer Biopathy.... New York: Orgone Institute Press 1948). Köln: Kiepenheuer & Witsch 1974 Rede an den Kleinen Mann. (Erschien zuerst in englischer Übersetzung von Theodore P. Wolfe: Listen, Little Man!. New York: Orgone Institute Press 1948). Frankfurt/M: Fischer-Taschenbuch-Verlag [Juni] 1984 port.: Escute, Zé Ninguém!. Trad.: .... São Paulo: Martins Fontes 19.... The Murder of Christ. Biographical Material ["The Emotional Plague of Mankind", vol. 1]. Rangeley ME/USA: Orgone Institute Press 1953. port.: O assassinato de Cristo ["A peste emocional da humanidade", vol. 1]. Trad.: Carlos Ralph Lemos Viana. São Paulo: Martins Fontes 1999 People in Trouble. Biographical Material (1927-1937). ["The Emotional Plague of Mankind", vol. 2]. Rangeley ME/USA: Orgone Institute Press 1953. Deutsches Original: Menschen im Staat. Frankfurt/M: Nexus-Verlag 1982; verb. Neuauflage Frankfurt/M: Stroemfeld-Verlag 1995 (Rezension) Sobre Wilhelm Reich: Ilse Ollendorff Reich: Wilhelm Reich. A Personal Biography. London: Elek Press 1969 David Boadella: Wilhelm Reich - The Evolution of his Work. London: Vision Press 1973 port.: Nos caminhos de Reich. Trad.: Eliane Reis Barbosa Rebelo. São Paulo: Summus 1985 Bernd A. Laska: Wilhelm Reich. Bildmonographie. Reinbek: Rowohlt-Verlag 1981, 5. aktualisierte Auflage 1999 Myron Sharaf: Fury On Earth. A Biography of Wilhelm Reich. New York: St. Martin's Press / Marek 1983.
jorge martins
Enviado por jorge martins em 14/09/2015
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